sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Do domínio público

Em um dia nublado, desses de se dar apenas com as cobertas, ruminava a vida um desses velhos decrépitos, das madeixas alvas, preto que nem coivara tostada. O velho metia-se só consigo e seu cachimbo antigo, dos tempos da espada, mas de madeira boa, dissimulado pelo chapéu de palha, que lhe escondia um palmo e meio da cara.
Parecia que não tinha casa, não arredava o pé daquela sarjeta imunda que lhe servia de alcova. Não enchia ninguém, nem queria, valia-lhe muito só o cacoete que tinha. É que aquele velho, sem nome, sem nada... bicho-do-mato fora do nicho, engolia horas e horas, pela solidão, a espiar a majestosa cidade cinzenta, selva poligonal. E dizia a quem perguntava, com as palavras bem medidas, que só o roceiro, na simplicidade da mente e dos almejos, pode dizer:
- É que isso aqui é tudo meu, ninguém me toma!
Respondia com a mesma resolução para quem quer que fosse, igual máquina idosa entregue à poeira.
Um dia, desses que ninguém entende por que motivo chamam outro, se em nada é diferente, veio um bom mulatinho de nariz empinado, na lepidez da pressa, convencido que só, com o sarará bem penteado às maneiras da corte e terno de segunda de mal corte.
Parou no empório defronte à sarjeta. Gesticulou com a mão. Pediu com a voz maçante de palrador:
- Um café bem doce. Por favor.
Fitava com asco os zé-povinhos que lhe vinham à vista.
Em circunstância alguma havia de estar lá se não fosse o pouco dinheiro.
Ainda com altivez, desviou o olhar ao proprietário e indagou:
- Que tem aquele velho do outro lado da rua?
- Tem é nada. Ele é assim mesmo.
O mulatinho pôs-se a matutar, checando de soslaio se lhe assistiam à evidência de sua superioridade. Ao passo que os fregueses hauriam o caldo de estranheza que o mulato lhes preparou. De olhar obstinado, munido dos versículos que lhe ensinaram os brancos, foi o colonizado ter com o preto:
- Que faz aí?
Continuou o preto tácito, sorvendo as baforadas deliciosamente pela boca ressecada.
- Acho que você não me ouviu...
Nada do preto, nenhum esboço de olhar, nem de través.
- Perguntei que fazes aí!
De repente ressoou um sopro franzino de voz, era o preto:
- Só cuido do que é meu.
- E que que é teu?
- Minha mata.
- Que mata, homem?
Não vê que estamos em pleno centro urbano?
O velho soltou um suspiro de desdém e se calou novamente.
O capitão-do-mato continuou a atiçar:
- Anda, velho besta... Desembucha! Senão hei de arranjar um jeito de tirar-lhe daqui.
- Deixa-me em paz.
- Deixo-te em paz se me responder.
O velho tirou da algibeira um chumaço de fumo e preparou outra nuvem de fumaça lívida que se misturou rapidamente pelos pavimentos.
- Vamos, diga!Por um intervalo de tempo, só se percebia a brisa emanada das ventas dos dois. O mulatinho, uma pilha de impaciência, instava e o preto, pachorrento, ignorava o outrem. Eis que então o mulato, já ávido, por discutir e argumentar, limpa a testa molhada de suor e, sorrindo de escárnio, profere:
- Já sei que é... Você pensa que a cidade é sua, né? Negro bobo. Deve estar louco, só pode ser.
Pois eu poderia te explicar bem o que te faz tão louco, mas não perderia meu tempo com gente ignóbil feito você.
O negro assistia calado a toda aquela tagarelice. O mulato adestrado, não se contendo de apresentar o que tinha aprendido, dava vazão à conversa:
- Pois é, seu nego velho... Você já ouviu falar de Rousseau? Imagino que não. Não é do seu gabarito.
Já saciado com a citação, não procurou esbanjar-se do conhecimento enorme que as enciclopédias em promoção haviam-lhe dado.
Calou-se por um tempo.
Porém, o silêncio gritava aos seus nervos auditivos, mordia-lhe as orelhas, não era de sua índole deixar um negro tão burro ali, sem troco, estorvando o movimento do bom trabalhador.
- Não vai dizer nada?
- Dizer o quê, seu moço?
- Ora... Alguma cousa!
- Não tenho nada pra dizer.
Só o que vocês querem é tirar tudo o que eu tenho de mim.
- Ô, velho imbecil...tu não tem posse de nada não! Tu é pobre. E vai morrer pobre, afundado na cachaça, preto doido.
A serenidade do velho atormentava o mulato, já estouravam-lhe as veias do pescoço, a mente, embotava-se, a visão estava turva. Disse, em um esforço cabal:
- Vou chamar alguém para tirar-lhe daqui.
- Faz isso não, sinhô... Vai fazer isso por quê? Que que eu te fiz?
- Não é por mim. Por mim eu lhe deixaria aí, vivendo de fumo pelo resto da vida. Mas eu tenho meu dever como cidadão. Alguém precisa assear o lixo.
- Do que que o senhor me chamou?
- Lixo... é isso que o senhor é: A encarnação, se é que há carne nesses corpo fino, de todo o atraso, de todo a escória do nosso corpo social.
- Ora, seu...
O preto lançou-se sobre o almofadinha, que, tomado pelo nojo de toda aquela cultura estranha e inferior sujando suas roupas falsas, gritou, afoito, por algum ato de nobre de solidariedade.
Ainda que os berros agudos do mulato afeminado se alastrassem pelas ruelas terrosas da cidade, veementemente, insuportavelmente, ninguém foi capaz de ouvi-lo.
O curso ignaro dos miseráveis e dos filisteus persistia, surdo e intacto, das acordos ilícitos dos granfinos aos assaltos fulminantes da baixa bandidagem. Naquela tarde, a sociedade não chorou a morte de nenhum dos seus filhos dementes, mas sorriu um sorriso estranho, um sorriso novo e singelo de satisfação.

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